Julgamento (Shiken)

"O que essa garota tem na cabeça?" Era o que passava pela mente do garoto quando Kona saía rindo, do arbusto no qual estava. Ansiosa e faladeira, duas qualidades que KaiTen sempre odiou nas pessoas, mas sabia que no caso dela não era proposital, afinal, via uma grande inocência proveniente da garota.

- .... "bam" ... "pow" ? - KaiTen não entendia direito as onomatopeias da garota, e prestava mais atenção nos soquinhos que recebia no ombro. - Coragem nascida da ignorância... - Qualquer outra pessoa do grupo que fizesse o mesmo com ele, certamente receberia alguns "soquinhos" no ombro, em retorno.

- Treinar com o Lei... reconheço que sua força e velocidade são muito elevadas, por isso ele sempre foi a única pessoa com quem conseguia treinar de igual para igual mas... - KaiTen retirava então, um dos braceletes de metal que tinha nos antebraços e nas pernas, então o deixava cair no chão. - A superioridade está comprovada. - O bracelete caia no chão com muita força, chegando a afundar até a metade, no chão de terra. - Eu preciso me limitar para treinar com ele. Heh !

A felicidade do jovem Dragão era palpável. Sentia um grande orgulho naquilo, ficara tão satisfeito com seu treino, que tivera até mesmo a necessidade de contar à alguém sobre o resultado, coisa que nunca fizera antes.

Mas então a pergunta da garota o surpreendia. O céu. Haviam poucas nuvens naquela noite e as estrelas pareciam bem brilhantes, com uma Lua crescente destacando-se no fundo arroxeado da noite. Por alguns segundos, respirando o ar fresco, KaiTen deixava-se relaxar por alguns momentos, mas então lembrava de seu pai "Eu só quero viver uma vida bem tranquila junto de todo mundo. E até você, meu filho idiota, está em meus planos."

- Tch... o céu é apenas o céu, não tem muito o que ver nele. - Sacudia a cabeça voltando aos seus pensamentos. - Um Dragão não tem muitos assunto a tratar com os humanos... Eu me isolo em locais mais altos por uma mera questão de hierarquia. Heh. - Coçava o nariz em seu tom prepotente de sempre.

Quando via KaiTen deixar aquele bracelete pesado cair , Kona levava um susto , mas ao mesmo tempo que levava um susto ela se agachava e com as duas mãos tentava levantar o amuleto , inutilmente , ele parecia colado ali para sempre. Enquanto tentava ela continuava falando o que lhe vinha na cabeça.

- Hahaha incrível , você é mesmo forte! E muito gentil por usar essas coisas pra não machucar o Lei.

Era essa sua conclusão , não via aqueles pesos como forma de treinamento , e realmente acreditava que ele se segurava contra o Lei pra não machuca-lo pois eram amigos.

Depois de mais alguns instantes tentando levantar aquele bracelete Kona caia sentada no chão, e continuava olhando pra cima enquanto escutava KaiTen falar sobre o céu. Kona pensava nas palavras , "Se isolar por questão de hierarquia".

- Eh....Dragões são mesmo incríveis...  mas não é meio solitário ? Ficar aqui sozinho , longe dos humanos, dos amigos, se quiser eu posso vir te fazer companhia haha...

Kona não conhecia o orgulho de KaiTen , nem mesmo o orgulho dos dragões , ela pensava que ficar sozinha num lugar como aquele seria muito triste , por isso chegava a conclusão de que KaiTen precisava de companhia, ela admirava muito a força e a personalidade do garoto, e suas intenções eram as mais puras possíveis.

- Hahahaha ! Então, é assim como você vê as coisas? Talvez eu seja mais misericordioso do que eu imagino, heh ! - Dizia KaiTen, referente ao comentário de Kona sobre ele ser gentil. - Mas não se engane... Dragões não são conhecidos por sua gentileza.

Um súbito brilho nos olhos de KaiTen, refletidos pela luz da lua, lhe davam um ar de grande seriedade, quando ela tocava no assunto da solidão. Durante seu crescimento, KaiTen foi percebendo que seu único caminho, era ficar cada vez mais sozinho. "Eu tenho uma incrível família de Dragões... mas ja desisti deles." As palavras jamais sairiam de sua boca, por isso ele ficava quieto, enquanto se agachava para pegar seu bracelete novamente e colocar em seu braço esquerdo.

- Para um Rei, existe apenas um Trono. E esse Trono, fica sempre em algum lugar mais alto, acima dos olhos da plebe. É apenas o destino daqueles que nasceram para governar. - KaiTen estava pronto para mandá-la embora, quando de repente, ao olhar para Kona, daquele jeito alegre.... Sayuri. Cerrava os dentes com força. Um forte amargor vinha em sua boca, mas resolvia rir de seu jeito arrogante de sempre. - Hah ! Você me faz lembrar uma pessoa, Kona, por isso, vou te contar um segredo. Eu só preciso dormir uma vez a cada sete dias, por isso, pode me visitar quando estiver afim. Só não abuse. Tch.

Kona escutava cada palavra que KaiTen falava ,  e não duvidava de sua sinceridade nem por um segundo, da mesma forma que não conseguia mentir , Kona não conseguia detectar uma mentira nem que ela estivesse na sua cara.

Quando escutava a história de KaiTen , sobre ser o destino de um rei ser sozinho Kona se sentia triste , não queria pensar que seu amigo fosse acabar sozinho, não queria pensar que o destino dele era ser sozinho. Ela não conhecia o conceito de Rei , mas sabia muito bem que ficar sozinho era ruim , ela mais que ninguém sabia disso.

- Destino... Quando eu fiquei sem minha mamãe (Kona nunca aprendeu a chama-la de outra forma) naquele lugar eu pensei que fosse meu destino ficar sozinha, mas dai vocês apareceram explodindo tudo com socos e chutes! Hahaha foi o máximo , e agora eu não to mais sozinha. Por isso não se preocupe! Se um dia você ficar sozinho vai ser a minha vez de aparecer explodindo tudo no caminho!  Hahahahaha.

Ela falava demais , falava o que vinha em sua cabeça , e o que pensava , e mesmo quando falava sobre algo triste, não parecia ser triste pois sua voz e sua expressão eram alegres e despreocupadas, era como se Kona nunca tivesse tido nenhum problema em toda a sua vida, como se sua vida até então tivesse sido perfeita, mas como todos sabem , sua vida nunca chegou perto de ser perfeita.

Ir até a vila era tudo o que Kona queria a um bom tempo , e de tanto atormentar Lei ela acabava conseguindo ir junto com Mitsuko, por todo o caminho tudo o que Kona via de novo era motivo de empolgação , parecia uma criança, não parava um segundo quieta , sempre correndo de la pra cá daqui pra lá e apontando pra tudo e todos."Olha olha! Hahaha".

Finalmente chegavam a uma taberna , não que Kona soubesse o que era uma taberna , talvez até soubesse mas não se lembrava de uma.

- Pode ter alguma coisa lá , vamos vamos!

Sem pensar duas vezes Kona pegava a mão de Mitsuko e corria na direção da taberna, porém no momento que entrava , ela nem se quer olhava para as pessoas, apenas para o lugar , tantas coisas empilhadas , uma bebidas estranhas , era um lugar pras pessoas se reunirem e comerem , parecia divertido.

- Aqui deve ter o que a gente quer, pelo menos comida tem! Vem vamos perguntar alguém.

Kona andava em direção ao balcão , ela era tonta , não percebia que todos a olhavam estranhamente por isso acabava não sendo afetada pela atmosfera ruim.

- Divertirem? Quem são esses Mit?

Ensinada por todos do grupo , Kona não confiava em estranhos bem como lhe foi avisado , "fique longe de pessoas estranhas é perigoso" , mas as palavras divertir e brincar chamavam sua atenção.

- Brincar? De que?!

Mas quando escutava Mitsuko falar que não estavam interessadas sua animação sumia e ela ficava séria também.

- Não queremos? É não queremos!

Por que aquelas pessoas não iam embora? Qual o problema delas? Kona não entendia nada disso , a unica coisa que ela entendia naquele momento ,era que Mitsuko não estava bem com aquela situação, e ver sua amiga naquele estado fazia Kona perder sua calma.

- TIRA AS MÃOS DELA SEU ESQUISITO!

No mesmo instante que falava isso Kona chutava o homem que tocava em Mitsuko entre as pernas e empurrava  outros dois com força. Ela parecia realmente nervosa , talvez pela primeira vez , ver alguém mexendo com sua amiga lhe mostrava um sentimento novo, e sobre não causar confusão , Kona não via motivo pra deixar aquilo continuar , mesmo que precisasse bater em todo mundo naquele lugar.

Com o pouco treino que já havia recebido de Lei , ela já estava muito mais forte , o suficiente pra vencer alguns aldeões desarmados.

- Vamos Mit a gente pode com eles ! hahahaha!

No lugar de sua raiva surgia uma surpreendente empolgação, era a primeira vez que brigava fora do treinamento. Ela não conseguia tirar aquele sorriso besta do rosto.

Sua primeira batalha , se é que aquilo podia ser chamado de batalha , "briga" era a palavra correta , Kona não conseguia esconder sua empolgação.

- Podem vir! hahahah!

Com a palma da mão Kona acertava o primeiro oponente no queixo o fazendo perder o equilíbrio , em seguida o empurrava em cima de uma das mesas e rolava por cima caindo assim do outro lado, no mesmo instante que rolava ela conseguia pegar uma garrafa de vidro e ao cair do outro lado já girava acertando a garrafa na lateral da cabeça de um segundo oponente. E não parava ai , ela continuava desviando e usando os golpes que havia aprendido com as aulas de Lei e observando o pessoal. Kona tinha muito talento para as artes marciais , não parecia de nenhuma forma que nunca havia lutado, a maneira que se esquivava e atacava eram quase idênticas a maneira que foi ensinada , porém com um pequeno toque do seu jeito de ser. Ela lutava sorrindo, não matava ninguém  , nem se quer deixava machucados sérios , levava um ou dois socos e ainda assim parecia se divertir.

- Hahaha isso é o máximo , a gente devia vir comprar coisas sempre Mit!

Para Kona aquilo era tudo uma grande brincadeira, começava com sua vontade de fazer com que aquelas pessoas parassem de importunar Mitsuko , e de fato aquela era a principal razão , mas lutar era simplesmente muito divertido.

Ela já havia batido e apanhado bastante quando os aldeões começavam a correr , só então notava as pessoas feridas no chão, e a forma que Mitsuko se encontrava, era impossível não se assustar. Mas apesar da cena aterrorizante das pessoas feridas Kona não se abalava com aquilo, não com as pessoas , o que a assustava era a própria Mitsuko.

Kona já estava acostumada com pessoas morrendo , já não sabia mais quantas pessoas morreram na sua frente enquanto estava presa , quantos amigos e pessoas queridas, por isso não entrava em pânico.

Mitsuko parecia diferente sim mas isso era motivo pra se afastar dela? claro que não, pelo menos esse era o pensamento de Kona. Mitsuko era a Mitsuko não importa o quão sinistra ou suja de sangue ela esteja , nem o quanto matou ou deixou de matar, Mitsuko era sua amiga e isso era motivo suficiente pra continuar ali.

Com seu olho roxo e o nariz sangrando Kona caminhava até Mitsuko e colocava a mão no ombro da garota com seu sorriso tonto. Seu rosto machucado acabava ficando engraçado naquela situação, mas ela nem se quer percebia.

- Demos um jeito neles não é? Agora a gente só precisa comprar o que o Lei pediu.

Kona ficava novamente pensativa, ela realmente não havia percebido que era exatamente daquelas pessoas morrendo no chão que eles deveriam ter comprado as coisas, por isso ficava curiosa tentando descobrir onde deveriam comprar.

Kona deixava Mitsuko olhar seus machucados sem problema algum , e perceber que ela estava mais tranquila tranquilizava também a própria Kona. Seu olho roxo e nariz quebrado não lhe incomodavam tanto assim , mas deixar Mitsuko cuidar deles lhe trouxe uma sensação boa de tranquilidade e calma. Ela mantinha os olhos fechados durante toda a limpeza e só os abria quando lhe era pedido pra procurar por algo dentro daquela porta.

- Dinheiro?! Temos que deixar quando compramos não é? foi o Lei quem falou

Ela caminhava até aquela porta e a abria , parecia destrancada , la dentro havia tudo o que eles precisavam ,  Kona se empolgava novamente e começava a mexer nas coisas sem parar , jogando latas e garrafas pra trás enquanto procurava por coisas novas e coisas gostosas.

- Hahahahah quanta coisa!  Mit você precisa ver iss..

Quando Mitsuko lhe falava sobre musica Kona tinha uma pequena lembrança do passado agora distante, a unica musica que se lembrava era a que sua mãe lhe cantava pra dormir , que de alguma forma ficou gravada em sua memória e nenhuma daquelas experiências conseguiu tirar.

Brilha, brilha, estrelinha
Como eu quero saber o que você é
Acima do mundo tão alto
Como um diamante no céu

Quando o sol escaldante está desaparecido
Quando não há nada que brilha no céu
Então você vai mostrar o seu pouco de luz,
E brilha, brilha, durante a noite.

No céu azul escuro
Você mantem-se
E através de minhas cortinas, muitas vezes a espreitar
Para você  fechar os olhos
Até que o sol esteja no céu

Então eu vou viajar no escuro
Obrigado pelo seu tempo, faísca
Não podíamos ver o caminho para Deus
Se você não brilhasse tanto..


Um trecho da musica , a mesma que ela estava cantando enquanto se espreitava pelos dutos de ventilação da APC , poucos instantes antes de encontrar seu amigos.


- Eu adoro musica hahahah! Minha mamãe costumava cantar pra mim.

Falar sobre o passado daquela forma era triste sem duvidas , mas ela não percebia isso ,falava como se fosse algo natural e completamente normal , e de fato adoraria escutar a musica de Mitsuko.